“Meu coração disse: Senhor, buscarei a
vossa face. É vossa face, Senhor, que eu procuro, não desvieis de mim o
vosso rosto” (Sl 26, 8s).
Vamos caminhando no nosso grande retiro
espiritual na Santa Quaresma, tempo de penitência e tempo de conversão.
Tempo da escuta da Palavra de Deus e dos seus desígnios para a nossa
caminhada diária para que possamos voltar para a amizade com Deus. Deus
não quer a morte do pecador, mas sim que esse pecador se converta e viva
uma vida em abundância, dando testemunho do kerigma cristão.
Na
primeira Leitura – Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18) apresenta Abraão obediente
até o sacrifício de seu filho único. Pedindo que Abraão sacrificasse seu
Filho, Deus não apenas testou a sua obediência, mas colocou em questão
todo o futuro de sua descendência. Será que Deus precisa de tais provas
para saber se o homem lhe é fiel? Ou será que a fidelidade e a confiança
só crescem quando são provadas? Prestes a sacrificar toda a segurança, o
homem se torna realmente livre; e é assim que Deus o quer, para que
seja seu aliado. Abraão foi sempre obediente a Deus. Abraão, observando
seus contemporâneos, percebe que tal é o amor que têm por seus deuses
que chegam a sacrificar-lhes seus primogênitos. Parece-lhe, então que o
amor de Deus exige dele o sacrifício de Isaac. Mas Deus o impede, não
quer a morte do homem, mas a vida. Abraão passa, então, a considerar
Isaac como duplo dom de Deus: nascido de Sara estéril e salvo da morte.
De qualquer modo, a disponibilidade da fé de Abraão é agradável a Deus,
que renova as promessas a ele feitas.
Prezados irmãos,
Na Carta de São Paulo aos Romanos(Rm
8,31b-34) Deus não poupou seu único Filho. Quem, de fato, sacrifica seu
filho não é Abraão, mas é Deus mesmo: prova de seu amor por nós, que não
conseguimos imaginar, mas no qual acreditamos firmemente. A fidelidade
de Deus anunciada na primeira leitura é aqui plenamente proclamada: Deus
está com todos os que têm fé e que por ela foram justificados. Assim,
também, Cristo que, em sua fidelidade ao Pai, deu a vida por nós, não
pretende condenar-nos. Esse argumento pode resumir-se numa pergunta:
“Quem nos separará do amor de Cristo e do Pai?”. Nesse contexto, há uma
única resposta: só nós podemos separar-nos do amor de Deus em Cristo
Jesus. Deus jamais tomará a iniciativa da ruptura. Ele é um Deus fiel.
Caros irmãos,
A liturgia deste
domingo é repleta do mistério de Deus: a sua transfiguração. Esta
passagem bíblica tem um significado muito profundo, tendo em vista que o
saudoso Pontífice João Paulo II, na sua Carta Apostólica do Rosário da
Santa Virgem Maria, incluiu como quarto mistério luminoso exatamente da
perícope que hoje refletimos a Transfiguração do Senhor Jesus.
Mas,
irmãos, o que vem a ser a Transfiguração? A Transfiguração é o momento
em que Jesus revela sua glória diante de seus discípulos. Esse é o
resumo do Evangelho deste segundo domingo da Santa Quaresma.
Devemos
situar esta visão no contexto em que Marcos criou ao conceber a
estrutura fundamental dos evangelhos escritos. Na primeira parte de sua
atividade, Nosso Senhor Jesus Cristo se dirige às multidões, mediante
sinais e ensinamentos, que deixam transparecer o “seu poder e a sua
autoridade”, mas não dizem nada sobre o Seu Mistério Interior. Na
segunda metade de seu Evangelho, ele fala que Jesus revela às suas
testemunhas - e depois discípulos – o seu Mistério interior: sua missão
do Servo Padecente e sua união com o Pai. O que foi confiado a Jesus
pessoalmente, pelo Pai, na hora do Batismo, quando a voz da nuvem lhe
revelou: “Tu és o meu filho muito amado, em quem eu pus minha afeição”
(Mc 1,11). Agora é revelado aos discípulos: “Este é o meu filho amado,
escutai-o”. Isso para demonstrar que os mistérios de Deus não podem ser
reservados para poucos, mas devem ser comunicados e partilhados com
muitos para a edificação do Reino de Deus que se inicia na nossa
peregrinação por este mundo.
O Evangelho de hoje(Mc 9,2-10) nos
mostra quem é Aquele que nos veio salvar e em que nos haveremos de
transformar, se superarmos as tentações da vida presente pela contínua
conversão aos seus ensinamentos e sua pessoa: seremos transfigurados.
Meus irmãos,
O Antigo Testamento é
um compêndio de recados para o povo de Israel. Ali está presente a
aliança entre Deus e a Nação Israelita. O povo prometeu: “Faremos tudo o
que o Senhor nos disse!” (Ex 24,3). Mas Jesus veio inaugurar um novo
tempo. Deus nos apresenta o seu Filho Jesus, a nova Arca da Aliança, o
novo templo de Deus, e recomenda com insistência: “Escutai-o!” Este era o
dever dos apóstolos e o nosso hoje: escutar Jesus com mais atenção do
que o povo de Israel escutou Moisés, que lhes transmitira a vontade de
Deus. Apesar da morte, ele tem palavras de vida eterna.
Os
caminhos de Deus ultrapassam as razões da inteligência humana; quanto
mais, quando se trata da morte de quem, por definição, é imortal. Jesus
não se transfigura para deslumbrar seus discípulos e seguidores e
demonstrar-se superior a eles. Jesus tratou de um gesto para inspirar,
criar e fundamentar a confiança de quem tinha razão para ter medo. Morte
e vida não se contradizem, mas fazem parte de um processo natural e de
um mistério de fé e esperança cristã. Jesus, Filho de Deus Altíssimo e
destinado para ser rei eterno e universal, devia passar pelos escarros,
pelas dores e pela morte. Por isso, o Monte Tabor e o Monte Calvário,
postos hoje um perto do outro, nos ajudem a compreender que no mistério
da dor há ricas e encantadoras sementes divinas.
O monte da
Transfiguração é colocado hoje à luz do Monte Calvário. Não pelo formato
geográfico, porque o Calvário não passa de uma pequena elevação, mas
pelo seu significado simbólico dentro da história da salvação. O
Calvário é marcado pelo sangue e pela dor, mas de seu chão brotam as
raízes da vida eterna. O Tabor vem hoje envolto de luz e divindade,
entretanto, profetizando um caminho de aniquilamento: cumprir a vontade
do Pai até o extremo da renúncia e da morte. No Tabor ecoa a voz amorosa
do Pai: “Este é meu filho muito amado, escutai-o”. No Calvário ouvimos a
célebre frase da condição humana do Senhor: “Meu Deus, meu Deus, por
que me abandonaste?” Aos olhos da fé, os dois montes se fundem, porque a
crueza do Calvário revela a extrema misericórdia e o infinito amor de
Deus.
A morte que Jesus anuncia como a sua, morte violenta,
convida-nos a morrer diariamente para o pecado, a cada minuto, a cada
instante, procurando sempre passar do Calvário para o Tabor, da desgraça
para a luz, do pecado para a graça salvadora. Morrendo para o pecado
estamos transfigurando para a vida eterna.
Meus irmãos,
Aparecem Moisés e
Elias. Moisés o maior legislador e Elias o mais santo dos profetas.
Jesus Cristo superou todos os profetas, porque nele se completou o tempo
da salvação, porque “Ele é o Meu Filho muito amado”. Por isso, as
atitudes que devemos cultivar nesta segunda semana da Quaresma são as
seguintes: a humildade, o despojamento, o serviço, a doação em prol de
muitos. Só podemos aceitar este ensinamento na confiança de que ele teve
razão. A razão de Jesus é a razão do Batismo, em que somos lavados do
pecado e inscritos como cidadãos do céu. Valorizamos nosso Batismo,
passando do Calvário – sofrimento e pecado – para o Tabor – alegria e
graça santificante de Deus.
Portanto, somos convidados a subir
com Jesus a montanha e, na companhia de três de seus discípulos, viver a
doce e cândida alegria da comunhão com ele. Somos embalados pelo
testemunho da fé de Abraão e de Sara, que, obedientes à palavra de Deus e
portadores da palavra da Salvação, desafiaram as deficiências da
velhice e da esterilidade para gerar numerosa descendência. As
dificuldades e sofrimentos da caminhada não podem nos abater ou
desanimar. No meio dos conflitos da vida, o Pai nos permite vislumbrar,
desde já, sinais de ressurreição e nos dá o mandamento de escutar a
palavra de Jesus, o Filho amado.
Renunciando aos vícios,
libertando de tudo que vai contra os valores do Evangelho vamos assumir a
nossa vocação de servir a Cristo, que é servir aos irmãos na busca de
maior solidariedade e fraternidade. Amém!
Pe. Wagner Augusto Portugal